terça-feira, 16 de agosto de 2016

Salpicadinhas da Costa!

Na costa de Caparica, junto ao sonoro Atlântico, vivem humildemente aqueles esforçados lusíadas cuja gloriosa epopeia cantou a épica musa de Camões. A vista nostálgica destes homens, que se humedece perante as doces melodias dos fados nacionais, advertem-nos de uma alma plena de sonhos passados e de uma vontade dominada pelas decadências presentes.

Costa da Caparica, pescadores, 1901.
Imagem: Biblioteca Nacional de España

Portugal, melhor ainda que Espanha, representa na Europa o fidalgo diminuido, dignamente orgulhoso das suas passadas grandezas, nobremente entristecido por suas presentes ruinas. O admirável autor de A ilustre casa de Ramires, pinta bem vigorosamente o interior e o exterior deste povo, que por acaso ao seu espírito sonhador e romântico deve a sua decadência e a sua pobreza.

Ignoro qual classe de influência tenha podido exercer nele a aliança e a vizinhança da nacionalidade britânica; porém pelos resultados inclino-me a crer que somente tenha influenciado en manter e excitar os sonhos de grandezas, peculiares a todo o espírito poético e romântico.

Porque esta poesia e este romantismo — que hoje parecem demora e lastro assim nos individuos como nos povos — é a nota vibrante que o harmoniza tudo no país lusitano; e é que o dão assim, naturalmente, a alma da Natureza daquela terra e a natureza da alma daquelas gentes.

A terra fértil e exuberante, o Céu mutável e pictórico, o mar sonoro e bravo, fazem almas sonhadoras e aventureiras que pelos caminhos do sonho e da aventura chegam às grandes conquistas ou aos grandes fracassos.

E assim, esse mesmo mar. que um dia cedeu as suas arrogâncias diante dos Vasco da Gama e no outro dia inspirou a audácia náutica dos Magalhães, hoje somente parece servir para tirar do seu seio opulento o vivo e reluzente metal da pesca, de que se mantem miseravelmente todo o povoado marítimo extendido ao longo da costa.


A vida será mísera, porem não falta nela a magia da poesía. Bem cedo aparelham a barca e os mesmos pescadores empurram-na pela areia até ao espumoso rebentar das primeiras ondas, onde permanece como una gôndola extranha, como uma poética meia lua plena de arabescos decorativos.

E quando volta da pescaria, se o Céo está claro e o mar tranquilo, a água parece um espelho onde se reflecte o lençol celeste em que uma meia lua gigantesca vai sulcando nuvens verdosas e prateadas.

Ao amanhecer chegam as mulheres para o produto da minguada façanha, passa o peixe das redes aos cestos, onde recebe um ligeiro polvilhar de sal, e partem para a capital e para os lugarejos vizinhos. 

Com a canastra à cabeça, descalças de pé e perna, passam e repassam aquelas veredinhas estreitas, abertas violentamente entre a exuberância dos pinheiros e castanheiros, cantando os típicos fados nacionais.

Costa da Caparica, Peixeiras, 1901.
Imagem: Biblioteca Nacional de España

No romantismo que se desprende dessas canções parece latir a nostalgia dos esplendores
passados, a saudade desperta. A melancolia que essas mulheres vão partilhando pelas sendas escondidas, parece a elegia entoada às nostalgias que os seus homens, à mercê desse mesmo mar, realizaram para a honra da sua História.

Por esse mesmo mar, seus próprios homens, que hoje só sabem encher de peixe os ventrudos cestos, souberam lançar-se a descobrir países esplêndidos, a conquistar riquíssimas terras distantes, a deixar com o seu idioma a perpetuidade de uma raça e a ensinar a rota por onde se podia dar a volta ao mundo.

E assim que as primeiras casas aparecem, cessa a melancólica sonata dos fados — que é como desvanecer-se o sonho — para dar lugar à realidade presente, e então vibra no ar o pitoresco pregão:

— Salpicadinhas da Costa!

Todo aquele que tenha estado neste povoado, actualmente ao menos, creio que com a impressão da sua pobreza actual terá percebido a fragância da sua poesia de sempre,

(1) Julio Hoyos, Iris, n.° 126, Barcelona, 5 de outubro de 1901

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